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Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale
de Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas
e de loureiros viçosos. Disto é que não tem Paris, nem França, nem terra
alguma do ocidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas
coisas que nos faltam.
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Viagens na Minha Terra
CAPÍTULO X
Vale de Santarém.  Namora-se o A. de uma janela que vê por entre umas árvores. 
Conjecturas várias a respeito da dita janela.  Semelhança do poeta com a mulher
namorada, e inquestionável inferioridade do homem que não é poeta.  Os rouxinóis.
Reminiscência de Bernadim Ribeiro e das suas Saudades.  De como o A. tinha quase
completo os eu romance, menos um vestido branco e uns olhos pretos.  Saem verdes
os olhos com grande admiração e pasmo seu.  Verificam-se as conjecturas sobre a
misteriosa janela.  Da menina dos rouxinóis.  Censura das damas muito para temer,
a crítica dos elegantes muito para rir.  Começa o primeiro episódio dessa odisseia.
O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela
natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação,
tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada
grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de tons, de
disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a
paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver
ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os
pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem
senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro
homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.
À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se
corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e
variedade. A faia, o freixo, o álamo, entrelaçam os ramos amigos; a
madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e
festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o
chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das
árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada
 com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e
pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa;
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Almeida Garrett
parece-me mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que
todavia mal se vê...
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?
Parei e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás.
Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!... era completo o
romance.
Como há-de ser belo ver o pôr o sol daquela janela!...
E ouvir cantar os rouxinóis!...
E ver raiar uma alvorada de Maio!...
Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela? ... quem aprecie
e saiba gozar todo o prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que
parece que lhe andam esvoaçando em torno?
Se for homem é poeta; se é mulher está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher
namorada; vêem, sentem pensam, falam como a outra gente não vê, não
sente não pensa nem fala.
Na maior paixão, no mais acrisolado afecto do homem que não é
poeta, entre sempre o seu tanto de vil prosa humana: é liga sem que não
se lavra o mais fino do seu oiro. A mulher não; a mulher apaixonada
deveras sublima-se. idealiza-se logo, toda ela é poesia, e não há dor física,
interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positivo
da existência prosaica.
Estava eu nestas Meditações, começou um rouxinol a mais linda e
desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir.
Era ao pé da dita janela!
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos
um desafio tão regular em estrofes alternadas tão bem medidas, tão
acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance,
esqueci-me de tudo o mais.
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Viagens na Minha Terra
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se deixou cair
na água de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim de tarde... o
que faltava para completar o romance?
Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele balcão  vestido de
branco  oh! branco por força... a frente descaída sobre a mão esquerda,
o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu... De que cor os olhos?
Não sei, que importa! É amiudar muito demais a pintura, que deve ser a
grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no
vago da idealidade poética.
 Os olhos, os olhos...  disse eu, pensando já alto, e todo no meu
êxtase  os olhos... pretos.
 Pois eram verdes!
 Verdes os olhos... dela, do vulto na janela?
 Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes,
brilhantes, sem preço.
 Quê! Pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há ali uma
mulher, bonita, bonita, e?...
Ali não há ninguém  ninguém que se nomeie hoje, mas houve...
oh! houve um anjo, um anjo, que deve estar no céu.
 Bem dizia eu que aquela janela...
 É a janela dos rouxinóis...
 Que lá estão a cantar.
 Estão, esses lá estão ainda como há dez anos  os mesmos ou
outros, mas a menina dos rouxinóis foi-se e não voltou.
 A menina dos rouxinóis! Que história é essa? Pois deveras tem
uma história aquela janela?
 É um romance todo inteiro, todo feito como dizem os franceses,
e conta-se em duas palavras.
 Vamos a ele. A menina dos rouxinóis, menina com os olhos
verdes! Deve ser interessantíssimo. Vamos à história já.
 Pois vamos. Apeemo-nos e descansemos um bocado.
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Almeida Garrett
Já se vê que este diálogo passava entre mim e outro dos nossos
companheiros de viagem.
Apeamo-nos com efeito, sentamo-nos, e eis aqui a história da
menina dos rouxinóis, como ela se contou.
É o primeiro episódio da minha odisseia: estou com medo de entrar
nele, porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o
português não é bom para isto, que em francês que há outro não sei
quê...
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os
elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque enfim,
enfim, deles me rio eu: mas poesia ou romance, música ou drama de que
as mulheres não gostem, é porque não presta.
Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos; o que eu vou
contar não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias,
situações e incidentes raros; é uma história simples e singela,
sinceramente contada e sem pretensão.
Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo; e a matéria do meu
conto para o seguinte.
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Viagens na Minha Terra
CAPÍTULO XI
Trata-se do único privilégio dos poetas que também os filósofos quiseram tirar, mas não
lhes foi concedido; aos romancistas sim.  Exemplo de Aristóteles e de Anacreonte.  O [ Pobierz całość w formacie PDF ]

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